No e-mail anterior, eu falei da importância da saber o que a Bíblia é para lê-la melhor. Quero conversar um pouco mais sobre esse tema com você.
Hoje eu vou falar do cânon bíblico, isto é, dos livros que compõem a Bíblia. Esse é um tema relevante e que influencia diretamente na sua leitura das Sagradas Escrituras. Vou te mostrar como.
A divergência mais famosa é a quantidade de livros na Bíblia católica e protestante. Nesta última, sete livros que constam na Bíblia católica foram retirados do Antigo Testamento. São os livros de Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Baruc, Primeiro e Segundo Macabeus, além de alguns trechos dos livros de Daniel e Ester.
Essa diferença tem origem no seio do judaísmo. Por volta do ano 100 d.C., alguns rabinos se reuniram para definir o cânon, já que os cristãos também reivindicavam o Antigo Testamento. Eles decidiram manter somente os livros escritos originalmente em língua hebraica, dentro da terra de Israel e anteriores à escrita do livro de Esdras (cerca de 400 anos antes de Cristo). No século XVI, por influência dos protestantes puritanos, esse mesmo critério foi repetido no Ocidente cristão.
O cânon completo da Bíblia, composto pelos livros que constam nas Bíblias católicas até hoje, foi definido oficialmente pela Igreja no ano de 393, no Concílio de Hipona. Após a definição oficial, o cânon bíblico nunca mais foi alterado na Igreja; só foi reafirmado em Concílios sucessivos.
Em se tratando do Novo Testamento, os critérios adotados para inserir os escritos no cânon foram: aceitação unânime por todas as comunidades (universalidade, catolicidade), a origem apostólica e a ortodoxia, isto é, fidelidade à doutrina. Os cristãos mantiveram o Antigo Testamento integral porque assim fizeram os Apóstolos.
Você consegue perceber, como a Bíblia não se sustenta sozinha? Os critérios adotados pela Igreja, para seleção e inserção no cânon, desde o início, são os mesmos critérios até os dias de hoje: a Tradição e o Magistério da Igreja. A continuidade da fé cristã – tal como recebida e transmitida pelos Apóstolos –, além da assistência especial prometida por Cristo à Igreja (Mt 28,20), são o contexto e o apoio de que precisamos para ler a Bíblia.
Como está escrito na Constituição Dogmática Dei Verbum, a Tradição e a Sagrada Escritura tendem ao mesmo fim: “A Sagrada Escritura é a palavra de Deus enquanto foi escrita por inspiração do Espírito Santo; a sagrada Tradição, por sua vez, transmite integralmente aos sucessores dos Apóstolos a palavra de Deus confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos, para que eles, com a luz do Espírito de verdade, a conservem, a exponham e a difundam fielmente na sua pregação; donde resulta assim que a Igreja não tira só da Sagrada Escritura a sua certeza a respeito de todas as coisas reveladas”.
A Tradição e o Magistério – pela liturgia e pelos ensinamentos, especialmente – nos orientam para que saibamos ler corretamente (ortodoxamente) a Bíblia Sagrada. É graças a eles que a Palavra de Deus, retamente recebida, pode frutificar em nós. A Revelação cristã não se esgota na Bíblia, mas encontra nela um dos meios pelos quais Deus escolheu para Se comunicar conosco.
Vejamos o que São João (20, 21) escreveu no último versículo do seu Evangelho: “Jesus fez ainda muitas outras coisas. Se fossem escritas uma por uma, penso que nem o mundo inteiro poderia conter os livros que se deveriam escrever”. São João relatou uma parte do que testemunhou; outra parte ele transmitiu ao longo de toda a sua vida.
São João viu, viveu e ensinou. Note que as três ações, ainda que separáveis abstrata e cronologicamente, mantêm-se unidas quando pensamos na pessoa dele, no discípulo amado. De forma semelhante, a Bíblia, a Tradição e o Magistério não podem ser separados na vida real de cada cristão. Como está escrito na Dei Verbum, “[...] de tal maneira se unem e se associam que um sem os outros não se mantém [...]”.
Um tema como o deste e-mail, aparentemente dedicado a um “público especializado”, reverbera na nossa leitura da Bíblia. Em se tratando da Palavra de Deus, tudo nela e ao seu redor consiste no chamado que Ele nos faz; todos os nossos esforços de estudo são provas de amor, orações mesmo.
Veja como até a compreensão do cânon bíblico pode ser levada para a oração. Espero que este e-mail contribua para isso.
Até breve.
Victor.