A pergunta não é sobre uma viagem. Antes, trata de uma peregrinação interior.
O deserto é muito presente nas narrativas bíblicas, do Antigo ao Novo Testamento. Ele é símbolo de solidão, aridez e esterilidade; mas é, ao mesmo tempo, o lugar de encontro com Deus.
Neste e-mail, eu quero refletir sobre como esses dois símbolos – aparentemente antagônicos – são complementares. Na solidão e aridez do deserto nos encontramos com Deus; é no ermo solitário que Ele nos fala.
Essa imagem da peregrinação interior ao deserto, claro, não pode ser separada da própria Bíblia. Ao serem libertados da escravidão egípcia por Deus – liderados por Seu servo Moisés – os hebreus erraram por quarenta anos no deserto. Sem comida nem água, eles foram alimentados com o maná (Ex 16,13) e receberam água que brotou de uma rocha (Nm 20,11).
Na liturgia da Igreja, há uma oração antiga que relaciona a água que Deus tirou da rocha às lágrimas pelo arrependimento:
“Todo-poderoso e gentilíssimo Deus, que, quando Vosso povo teve sede, fizestes da rocha uma fonte de água viva; extraí da dureza dos nossos corações, nós Vos imploramos, as águas da compunção, para que possamos chorar pelos nossos pecados e, pelo Vosso mérito magnânimo, obter o perdão. Amém.”
Veja, como a Igreja faz a relação direta entre a experiência bíblica do deserto e a presença de Deus. O povo hebreu teve sede, pediu água e Deus ouviu os Seus filhos. Nós também precisamos ter consciência dessa sede; precisamos ter consciência de que estamos no deserto.
Não é uma experiência fácil e nem agradável. O profeta Elias foi alimentado por um anjo quando já estava esgotado (1Rs 19,6-8). O vazio do deserto faz com que nos concentremos no único alimento necessário: o próprio Deus.
Não é à toa que a Igreja pede um jejum eucarístico. Precisamos mesmo sentir fome e receber a Eucaristia com fome. Semelhante sensação, tão material, é símbolo e ocasião para a manifestação divina. Também foi no deserto que Moisés falou com Deus, manifestado na sarça ardente (Ex 3,2).
Por causa do pecado, temos uma visão fragmentada da realidade. Vemos nas criaturas de Deus – boas por causa de Seu Criador – fins capazes de nos realizar, de nos transformar completamente. Quando peregrinamos ao deserto interior, as coisas voltam às suas devidas proporções: tudo desaparece na vastidão da aridez. A nossa visão, agora cansada além de fragmentada, concentra-se pela primeira vez. E então experimentamos aquilo de que falou o profeta Jeremias (2,6): “Ele nos fez sair do país do Egito e foi nosso guia no deserto, em uma terra de estepes e perigos, país da seca e da sombra mortal, onde ninguém passa e nem mora”.
Nós conseguiremos passar pelo deserto? Conseguiremos encará-lo? Teremos força para fazer essa peregrinação? Graças a Cristo, sim. Foi no deserto (Mt 4) que Ele resistiu às tentações do demônio; foi no deserto que Ele disse “não” para aquilo que Adão dissera “sim”. Foi no deserto que Cristo começou a plantar um novo jardim, à nossa espera: “Alegrem-se o deserto e a terra seca, rejubile-se a estepe e floresça” (Is 35,1).
A peregrinação ao deserto interior é necessária; necessária e superável. Os nossos desejos humanos, bons mas desorientados, serão reordenados pela fome, sede e secura que já não encontram meios humanos de satisfação. É disso que você e eu precisamos: deixar de ver nos meios humanos a transformação completa pela qual o nosso coração anseia.
“Ele guiou o seu povo no deserto, porque seu amor é para sempre”, segundo o Salmo 136. É desse amor eterno que precisamos. Não fujamos mais do deserto que precisamos atravessar.
Até breve.
Victor.